sábado, 10 de outubro de 2015

O argumento da tradição já não é o que era

Antes de mais este argumento peca por antecipação. A decisão de quem será indigitado para tentar formar governo não é dos partidos, mas sim do presidente. A não ser que sejam convidados desde já pelo presidente a formar governo, o que os partidos de esquerda poderão fazer, caso se entendam, é a rejeição do programa de governo, ou o chumbo do orçamento da Coligação e não impedir a formação de governo, caso seja essa a decisão do presidente.
Quanto à substância do argumento, o que não ajuda é tratar a tradição como se fosse um formalismo. O que é formal é a lei, e neste caso a constituição. Não fosse assim e ainda seria aceitável que se matassem touros em Barrancos. Portanto, a ideia de que há uma subversão das regras pelo facto de não ser a coligação que ganhou as eleições a constituir governo não tem base formal e por isso não se devem evocar as regras. O facto de ter sido sempre assim - além de ser só por si, e em todos os domínios, um argumento fraco - deve também observar as razões concretas que assim determinaram este desenvolvimento. Os governos de minoria não se formaram espontaneamente porque tinha de ser; formaram-se por falta de alternativas. Quando a direita foi minoria no governo, foi porque não houve a possibilidade (por motivos óbvios) de, no quadro parlamentar, constituir uma maioria com os partidos à sua esquerda. Quando foi o PS, o mesmo se aplica (neste caso à esquerda e à direita). Daqui poderá resultar o argumento de que temos alguma dificuldade histórica relativamente a entendimentos políticos sólidos de governo, mas não que tenha de ser sempre assim, até porque isso poderia constituir uma forma contorcida de formalizar a incapacidade para gerar coligações.
A debilidade deste argumento do precedente histórico - da "praxis constitucional" - também se manifesta no sentido em que visa apenas o presidente e por isso não deve ser dirigido aos partidos. Que o Soares (87) disse ao Constâncio que não podia ser, ou que no caso dos Açores o Sampaio (96) não quis isto ou aquilo, remetem apenas para a responsabilidade política dos intervenientes, das suas decisões, e, também importante, para a especificidade do contexto político em que estas decisões foram tomadas. É evidente que formam um desenvolvimento histórico, mas não estruturam um quadro imperativo de procedimento. Assim, o atual presidente pode, de forma legítima, decidir em linha com essa "praxis", desde que dentro do seu entendimento e no quadro dos seus poderes. Quanto aos partidos, devem desenvolver a sua acção política no sentido de encontrarem as melhores soluções possíveis independentemente deste tipo de avaliações subjectivas e, enquanto não for conhecida uma decisão presidencial nesta matéria, ponderar os vários cenários; e será essa decisão a poder confirmar a "praxis", não o contrário. O atual presidente até pode considerar essa tradição como factor influente na sua tomada de decisão, mas essa será a sua escolha, derivada do seu entendimento pessoal e não de qualquer imperativo pré-estabelecido pelos comentadores. Portanto, o argumento visa apenas, aparentemente, condicionar a acção do presidente embora seja dirigido ao campo partidário.

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