sábado, 1 de agosto de 2009

Escavaca que isso passa

Há que tempos vinha eu utilizando o estado de degradação física e porventura a falta de envergadura ética do tecto da minha casa de banho, da infiltração que o assola, como arma de arremesso político contra o “arco do poder”, até que por fim, esta semana, uma resolução de ordem superior determinou a necessidade de reparar o dito, por motivos que só um momento de fraqueza da minha senhoria poderiam justificar.
Apareceu-me à porta um senhor brasileiro que se apresentou como o gajo. O gajo? Que vem pintar… Ah pois…
O gajo! Isto saído da boca de um "chapa” soa mal, e não deixa de parecer que o “cara” se está imolando pela língua, como que capaz de se investir de alguma legitimidade conterrânea.
Há também questões outras que neste momento me assaltam: por exemplo, conhecer qual o lugar no ranking de pinturas e afins, que o cidadão brasileiro ocupa a nível mundial. De qualquer modo, o “gajo” permite-me pensar o quanto o povo brasileiro é liquefeito e vem perpassando para todas as áreas da sociedade portuguesa, inclusive no que diz respeito às idiossincrasias do português de Portugal. Ambiciono o dia em que serei atendido numa repartição de finanças pelo Vanderlei. Até lá vou sonhando com uma mulatinha para presidenta de junta em Canedo.
O gajo trazia atracado o técnico canalizador, o seu Vítor, este nascido no Cacém, para ver do que se passava com o tecto da casa de banho; e tendo ficado à porta desta, numa avaliação que lhe custou não mais do que dois segundos, o senhor proclamou “Ah pois é, isto tem de ir tudo abaixo”. Foda-se ó amigo, suspirei de imediato.
Mas é que é isso mesmo: se há coisa que por cá passa de pais para filhos é esta facilidade com que se avaliam as mais diversas situações e se postula este princípio reparador do “tem de ir tudo abaixo” como forma de unificar as possíveis vontades. É uma forma própria de autocrítica coletiva, que se esconde na náusea que o próximo nos suscita; o próximo que fez aquilo; aquilo que está ou ficou mal feito e que agora vai ter de ir abaixo. Por cá, aparentemente, pouco resta que não fosse melhor ir abaixo, e no limite, eventualmente, bem que poderia ser a expressão de uma estratégia de fundo da evolução, codificando o instinto numa adaptação de recurso, talvez até verdadeiramente moderna e revolucionária. Se por exemplo pensarmos em como o Sistema global ameaça “gripar”, o “vai ter de ir tudo abaixo” poderia bem ser o El Dourado da metafísica, o remédio eficaz para a dor, o maravilhoso reset do universo.
O problema é que falta coragem a quem pondera este princípio e numa terra onde tanto se proclama que tudo tem de ir abaixo e na verdade muito pouco se manda abaixo, e muito do que vai abaixo, vai porque calhou e faz resultar processos incestuosos nos tribunais para apurar responsabilidades, o que resta é a condição de que tudo é passível de flutuar entre a necessidade de “fazer” e o solavanco do “espera aí que agora não me dá jeito fazer… ou que se faça”.
Estamos pois encalhados em praias do projecto/estudo, mas já com o estaminé montado, a fazer negócio.
Uns dias mais tarde o canalizador, o seu Vítor, telefonou-me, informando-me que seria necessário “executar operações de peritagem” na minha casa de banho, a ver da minha disponibilidade e talvez saber das minhas opiniões sobre produtos de higiene. Perante o considerável potencial dos termos utilizados confesso que estremeci e passei a escrever um diário secreto. Operações de peritagem parecia-me bem, que a minha casa de banho merecia, sempre o mereceu!
Chegou-me lá o seu Vítor, desta feita com algum pudor, que ia ver... executar talvez, operações de peritagem. Lá o deixei por momentos, porque transportado para uma condição que não é tanto a nossa, mas que a realizamos à nossa maneira: a da nomenclatura técnica e do seu mundo de inúmeros mistérios e surpresas. Fiquei ciente e absolutamente convencido de que a utilização do “executar operações de peritagem” foi possivelmente a mais simpática das formas que o técnico canalizador, o seu Vítor, encontrou para prestar informação de que me ia escavacar os lavabos sem no entanto os deitar abaixo. Uma grande desilusão, porque talvez o grande problema da minha casa de banho seja somente o facto de ainda estar de pé. Mas não só irá ficar assim, como depois de devidamente escavacada se percebeu que o escavacanço não estava capaz de apurar causas para a infiltração. E de facto, o problema passou para o andar de cima; que metia uma coisa com sifão e tampa; que não estava nas melhores condições e que para tal se gastou dois minutos no sentido de desenrascar uma resolução de recurso. E desenrascou-se por dois ou três dias até que o problema se manteve e lá veio o seu Vítor escavacar mais um bocado. E depois soldou, colou, aplicou, deu mais um jeitinho na coisa e perante o insucesso voltou para escavacar. O que resta hoje, é que o problema não foi ainda totalmente resolvido e é com alguma perplexidade que aguardo desenvolvimentos, baralhado de tal modo que já nem faço ideia se desta vez o seu Vitor vem para escavacar ou para desenrascar.
Talvez seja esta uma das modalidades que tanto nos animam - partimos para as coisas capazes de fazer melhor que qualquer um e para isso vamos a jogo apostando a necessidade de mandar tudo abaixo. Chegados lá, onde podemos de alguma forma interferir com a extensão, acabamos por negociar a coisa, chamamos-lhe nomes, e se realmente não dá jeito mandar tudo abaixo, começamos a escavacar. Começamos a escavacar porque não pensámos noutra coisa que não mandar tudo abaixo. Escavacamos e depois logo se vê, alguma coisa se há-de desenrascar e lá isso desenrascamos que é uma coisa parva. Passamos a vida a desenrascar mas a chatice toda é que montamos a coisa deterministicamente e antes do desenrascar vem muitas das vezes o escavacar. Escavacamos para desenrascar – escavaca, desenrasca, escavaca, desenrasca, escavaca, desenrasca e a resolução, empurramo-la com a barriga para depois, muitas das vezes até ao infinito como se fossemos um bando de Fichtes labregos. Na relação com a “coisa” parece que por vezes ficamos presos algures entre a crítica e o idealismo numa espécie de bolha onde não há forma de ultrapassar a contradição. O pavor da hora em que tudo acaba arrasta-nos para a bricolage e acontece estarmos capazes de reparar o mundo com elásticos e fita-cola, se houver a mais pequena possibilidade de isso adiar por um instante o devir.
Enquanto aqui estou, acidentalmente, como sempre em todas as coisas, neste ram-ram onde se produz escavacanço, onde se escavaca o futuro como se não houvesse amanhã, a mim, resta-me pois aguardar pelo seu Vítor e pela sua forma airosa e borboleteante de passar pela vida.
Amanhã haverá ainda as oposições que anunciam deitar tudo abaixo assim que se instalarem no governo do país… promessas, promessas, digo eu com enfado, e o reparo que me ocorre é que me correria muito melhor o texto se em vez de “rasgar, rasgar, rasgar!” se dissesse “escavacar, escavacar, escavacar!”