quarta-feira, 17 de junho de 2009

sexta-feira, 5 de junho de 2009

A balada da espera

Recordo-me de quando era garoto e morava por cima, no terceiro andar, um senhor que era mestre de obras e que recorrentemente, na rua, junto à porta do prédio, por lá ficavam uns senhores, por vezes dias inteiros, aguardando por um sinal do velho. Suponho que tenha manifestado o meu interesse pela coisa até que alguém me explicou que o senhor do terceiro andar nem sempre pagava os serviços prestados pelos senhores do pescoço esticado para trás que bebiam das janelas e varandas do prédio a possibilidade de tudo se resolver, porque afinal sempre haveria movimento lá dentro, um tremer na cortina, um assomo humano. Creio que  destes momentos floresceu a minha inclinação, se bem que desmazelada, para a esquerda. Era garoto e já bem capaz de identificar a fealdade na figura daquela fraude laboral.
Depois, com o tempo, comecei a perceber que as “esperas” participadas por pessoas que de algum modo foram enganadas, era quase um mote nacional, uma actividade com pergaminhos e com regras próprias e a momentos, devidamente mediatizada, não no sentido de intentar resolver o Homem mas certamente, inoculando na indignação solidária de todos os que já foram miseravelmente burlados e de todos os que toleram a capaz hipótese de vir a ser, e isso ao que parece somos todos, a ideia de quanto é importante assistir no sofá ao odor das criaturas e da sua humanidade. É importante que nos recordem que esse odor está em nós, nos anima profundamente e do qual não é possível o corpo escapar, para que a vida continue pela sugestão do produto desodorizante que nos vai permitir finalmente obliviar provisoriamente tal desconforto.
É de facto esta uma das expressões máximas da participação política activa do povo português. Tão lusitano demonstrar a desgraça que se abateu sobre nós quando determinado individuo, ou tertúlia destes, mais ou menos habilidoso, incertamente movido por que instintos de conservação, nos contou uma história e no processo, nos rapinou uma substancial quantidade daquilo que detemos como riqueza própria. Tão nosso este socialismo do logro em que a dicotomia entre o burlão e o burlado se consubstancia na produção de uma economia de recursos e afectos, democrática porque capaz de inverter a qualquer instante os papéis, uma economia nacional para lá dos espartilhos da ética burguesa, uma geringonça que no seu desconcerto produz produto interno bruto aos solavancos, um sistema de oportunidades e de catarses que embora dependente das relações de poder, a elas sobrevive porque lhes é a priori.
As “esperas” são, regra geral, por quem já não vem, pelo que voltou ao nada no universo de quem o detinha e do nada voltou como ente no universo distante do outro. Na melhor das hipóteses haverá compensação - as “esperas” não têm fim.

Episodicamente sucede que uns quantos clientes de uma instituição bancária fizeram uma espera ao ilustre ministro da finança à saída da garagem de um hotel. Estas pessoas foram atraídas para os meandros da jogatana financeira por um banco que lhes acenou com a minhoca dourada. Decididamente a coisa não correu bem, pelo menos para os mais incautos, e eis que o corpo dessa vertigem para cumular as poupanças que tanto fizeram da vida uma passagem mais pobre, se volatilizou na ginástica do “sobe e desce”. Rústicos resolutos e bem sucedidos, uns, fura-vidas, outros, mas todos embarcados pela miragem bacoca dos dias de oiro, os “manifestantes” bloquearam a saída da garagem enquanto gritavam gestos e palavras de ordem perante o recuo do ministro.
“Dá-nos o nosso dinheiro!”
Lá para mais tarde, saído da porta da frente do hotel, o ministro enfim desabou sobre tanta desolação como um pai, censório mas não zangado, o melhor pai possível para tais crianças, capazes geneticamente de passar da porta da garagem e do que lá sucedera para um “Vossa excelência ” embargado por lágrimas.
“Vocês têm de responsabilizar quem vos enganou!”
Foi o desespero a verter auto-comiseração que uniu aquelas pessoas para tão inútil empresa junto do eleito, isto na perspectiva materialista delas. A utilidade que elas não podem, esconde-se numa raiva virada para dentro, inconsciente, pedindo explicações à sua devota participação num sistema que já lhes preparava este desfecho, nos becos do engano. Quando tudo terminar, seja como for, tenha o resultado que tiver, essa parte já estará feita e continuará inconsciente até que completa. Essa parte do berro e da culpa – da nossa e da dos outros – que não tendo encontrado explicação justa para o sucedido o deixará de fazer, permitindo enfim que a ira se faça dor capaz do perdão a si e da tristeza necessária e valente para negar a perpetuação da espiral que alimenta a espera.