Há que tempos vinha eu utilizando o estado de degradação física e porventura a falta de envergadura ética do tecto da minha casa de banho, da infiltração que o assola, como arma de arremesso político contra o “arco do poder”, até que por fim, esta semana, uma resolução de ordem superior determinou a necessidade de reparar o dito, por motivos que só um momento de fraqueza da minha senhoria poderiam justificar.
Apareceu-me à porta um senhor que se apresentou como o gajo. O gajo? Sim, venho pintar… Ah pois…
O gajo trazia atracado o técnico canalizador, o sr. Vítor, bem nascido no Cacém, para ver do que se passava com o tecto da casa de banho; e tendo ficado à porta desta, numa avaliação que lhe custou não mais do que dois segundos, o senhor proclamou “Ah pois é, isto tem de ir tudo abaixo”. Reativamente suspirei baixinho, mas depois tive de reconhecer que é isso mesmo: se há coisa que por cá passa de pais para filhos é esta facilidade com que se avaliam as mais diversas situações e se postula este princípio reparador do “tem de ir tudo abaixo” como forma de unificar as possíveis vontades. É uma forma própria de autocrítica coletiva, que se esconde na repreensão que o próximo nos suscita; alguém que fez aquilo; aquilo que está ou ficou mal feito e que agora vai ter de ir abaixo. Por cá, aparentemente, pouco resta que não fosse melhor ir abaixo, e no limite, eventualmente, bem que poderia ser a expressão de uma estratégia de fundo da evolução, codificando o instinto numa adaptação de recurso, talvez até verdadeiramente moderna e revolucionária. Se por exemplo pensarmos em como o sistema global ameaça “gripar”, o “vai ter de ir tudo abaixo” poderia bem ser o El Dourado da metafísica, o remédio eficaz para a dor, o maravilhoso reset do universo.
O problema é que falta coragem a quem pondera este princípio e numa terra onde tanto se proclama que tudo tem de ir abaixo e na verdade muito pouco se manda abaixo, e muito do que vai abaixo, vai porque calhou e faz resultar processos incestuosos nos tribunais para apurar responsabilidades, o que resta é a condição de que tudo é passível de flutuar entre a necessidade de “fazer” e o solavanco do “espera aí que agora não me dá jeito fazer… ou que se faça”.
Estamos pois encalhados em praias do projecto/estudo, mas já com o estaminé montado, a fazer negócio.
Uns dias mais tarde o canalizador, o sr. Vítor, telefonou-me, informando-me que seria necessário “executar operações de peritagem” na minha casa de banho, a ver da minha disponibilidade e talvez saber das minhas opiniões sobre produtos de higiene. Perante o considerável potencial dos termos utilizados confesso que estremeci e passei a escrever um diário secreto. Operações de peritagem parecia-me bem, que a minha casa de banho merecia, sempre o mereceu!
Chegou-me lá o sr. Vítor, desta feita com algum pudor, que ia ver... executar talvez, operações de peritagem.Por isso lá o deixei por momentos, porque transportado para uma condição que não é tanto a nossa, mas que a realizamos à nossa maneira: a da nomenclatura técnica e do seu mundo de inúmeros mistérios e surpresas. Fiquei ciente e absolutamente convencido de que a utilização do “executar operações de peritagem” foi possivelmente a mais simpática das formas que o técnico canalizador, o sr. Vítor, encontrou para prestar informação de que me ia escavacar os lavabos sem no entanto os deitar abaixo. Uma grande desilusão, porque talvez o grande problema da minha casa de banho seja somente o facto de ainda estar de pé. Mas não só irá ficar assim, como depois de devidamente escavacada se percebeu que o escavacanço não estava capaz de apurar causas relativamente à infiltração de água. E de facto, o problema passou para o andar de cima; que metia uma coisa com sifão e tampa; que não estava nas melhores condições e que para tal se gastou dois minutos no sentido de desenrascar uma resolução de recurso; e desenrascou-se por dois ou três dias até que o problema se manteve e lá veio o sr. Vítor escavacar mais um bocado. Depois soldou, colou, aplicou, deu mais um jeitinho na coisa e perante o insucesso voltou para escavacar. O que resta hoje, é que o problema não foi ainda totalmente resolvido e é com alguma perplexidade que aguardo desenvolvimentos, baralhado de tal modo que já nem faço ideia se desta vez o sr. Vitor vem para escavacar ou para desenrascar.
Talvez seja esta uma das modalidades que tanto nos animam - partimos para as coisas capazes de fazer melhor que qualquer um e para isso vamos a jogo apostando a necessidade de mandar tudo abaixo. Chegados lá, onde podemos de alguma forma interferir com a teimosia do mundo material, acabamos por negociar a coisa, chamamos-lhe nomes, e se realmente não dá jeito mandar tudo abaixo, começamos a escavacar. Começamos a escavacar porque não pensámos noutra coisa que não mandar tudo abaixo. Escavacamos e depois logo se vê, alguma coisa se há-de desenrascar e lá isso desenrascamos que é uma coisa parva. Passamos a vida a desenrascar, mas a chatice toda é que montamos a coisa deterministicamente e antes do desenrascar vem muitas das vezes o escavacar. Escavacamos para desenrascar – escavaca, desenrasca, escavaca, desenrasca, escavaca, desenrasca e a resolução, empurramo-la com a barriga para depois, muitas das vezes até ao infinito como se fossemos um bando de Fichtes labregos. Na relação com a “coisa” parece que por vezes ficamos presos algures entre a crítica moderna e o idealismo, numa espécie de bolha onde não há forma de ultrapassar a contradição. O pavor da hora em que tudo acaba arrasta-nos para a bricolage e acontece estarmos capazes de reparar o mundo com elásticos e fita-cola, se houver a mais pequena possibilidade de isso adiar por um instante o devir.
Enquanto aqui estou, acidentalmente, como sempre em todas as coisas, neste ram-ram onde se produz escavacanço, onde se escavaca o futuro como se não houvesse amanhã, a mim, resta-me pois aguardar pelo sr. Vítor e pela sua forma airosa de passar pela vida.
Amanhã haverá ainda as oposições que anunciam deitar tudo abaixo assim que se instalarem no governo do país… promessas, promessas, digo eu com enfado, e o reparo que me ocorre é que me correria muito melhor o texto se em vez de “rasgar, rasgar, rasgar!” se dissesse “escavacar, escavacar, escavacar!”
Apareceu-me à porta um senhor que se apresentou como o gajo. O gajo? Sim, venho pintar… Ah pois…
O gajo trazia atracado o técnico canalizador, o sr. Vítor, bem nascido no Cacém, para ver do que se passava com o tecto da casa de banho; e tendo ficado à porta desta, numa avaliação que lhe custou não mais do que dois segundos, o senhor proclamou “Ah pois é, isto tem de ir tudo abaixo”. Reativamente suspirei baixinho, mas depois tive de reconhecer que é isso mesmo: se há coisa que por cá passa de pais para filhos é esta facilidade com que se avaliam as mais diversas situações e se postula este princípio reparador do “tem de ir tudo abaixo” como forma de unificar as possíveis vontades. É uma forma própria de autocrítica coletiva, que se esconde na repreensão que o próximo nos suscita; alguém que fez aquilo; aquilo que está ou ficou mal feito e que agora vai ter de ir abaixo. Por cá, aparentemente, pouco resta que não fosse melhor ir abaixo, e no limite, eventualmente, bem que poderia ser a expressão de uma estratégia de fundo da evolução, codificando o instinto numa adaptação de recurso, talvez até verdadeiramente moderna e revolucionária. Se por exemplo pensarmos em como o sistema global ameaça “gripar”, o “vai ter de ir tudo abaixo” poderia bem ser o El Dourado da metafísica, o remédio eficaz para a dor, o maravilhoso reset do universo.
O problema é que falta coragem a quem pondera este princípio e numa terra onde tanto se proclama que tudo tem de ir abaixo e na verdade muito pouco se manda abaixo, e muito do que vai abaixo, vai porque calhou e faz resultar processos incestuosos nos tribunais para apurar responsabilidades, o que resta é a condição de que tudo é passível de flutuar entre a necessidade de “fazer” e o solavanco do “espera aí que agora não me dá jeito fazer… ou que se faça”.
Estamos pois encalhados em praias do projecto/estudo, mas já com o estaminé montado, a fazer negócio.
Uns dias mais tarde o canalizador, o sr. Vítor, telefonou-me, informando-me que seria necessário “executar operações de peritagem” na minha casa de banho, a ver da minha disponibilidade e talvez saber das minhas opiniões sobre produtos de higiene. Perante o considerável potencial dos termos utilizados confesso que estremeci e passei a escrever um diário secreto. Operações de peritagem parecia-me bem, que a minha casa de banho merecia, sempre o mereceu!
Chegou-me lá o sr. Vítor, desta feita com algum pudor, que ia ver... executar talvez, operações de peritagem.Por isso lá o deixei por momentos, porque transportado para uma condição que não é tanto a nossa, mas que a realizamos à nossa maneira: a da nomenclatura técnica e do seu mundo de inúmeros mistérios e surpresas. Fiquei ciente e absolutamente convencido de que a utilização do “executar operações de peritagem” foi possivelmente a mais simpática das formas que o técnico canalizador, o sr. Vítor, encontrou para prestar informação de que me ia escavacar os lavabos sem no entanto os deitar abaixo. Uma grande desilusão, porque talvez o grande problema da minha casa de banho seja somente o facto de ainda estar de pé. Mas não só irá ficar assim, como depois de devidamente escavacada se percebeu que o escavacanço não estava capaz de apurar causas relativamente à infiltração de água. E de facto, o problema passou para o andar de cima; que metia uma coisa com sifão e tampa; que não estava nas melhores condições e que para tal se gastou dois minutos no sentido de desenrascar uma resolução de recurso; e desenrascou-se por dois ou três dias até que o problema se manteve e lá veio o sr. Vítor escavacar mais um bocado. Depois soldou, colou, aplicou, deu mais um jeitinho na coisa e perante o insucesso voltou para escavacar. O que resta hoje, é que o problema não foi ainda totalmente resolvido e é com alguma perplexidade que aguardo desenvolvimentos, baralhado de tal modo que já nem faço ideia se desta vez o sr. Vitor vem para escavacar ou para desenrascar.
Talvez seja esta uma das modalidades que tanto nos animam - partimos para as coisas capazes de fazer melhor que qualquer um e para isso vamos a jogo apostando a necessidade de mandar tudo abaixo. Chegados lá, onde podemos de alguma forma interferir com a teimosia do mundo material, acabamos por negociar a coisa, chamamos-lhe nomes, e se realmente não dá jeito mandar tudo abaixo, começamos a escavacar. Começamos a escavacar porque não pensámos noutra coisa que não mandar tudo abaixo. Escavacamos e depois logo se vê, alguma coisa se há-de desenrascar e lá isso desenrascamos que é uma coisa parva. Passamos a vida a desenrascar, mas a chatice toda é que montamos a coisa deterministicamente e antes do desenrascar vem muitas das vezes o escavacar. Escavacamos para desenrascar – escavaca, desenrasca, escavaca, desenrasca, escavaca, desenrasca e a resolução, empurramo-la com a barriga para depois, muitas das vezes até ao infinito como se fossemos um bando de Fichtes labregos. Na relação com a “coisa” parece que por vezes ficamos presos algures entre a crítica moderna e o idealismo, numa espécie de bolha onde não há forma de ultrapassar a contradição. O pavor da hora em que tudo acaba arrasta-nos para a bricolage e acontece estarmos capazes de reparar o mundo com elásticos e fita-cola, se houver a mais pequena possibilidade de isso adiar por um instante o devir.
Enquanto aqui estou, acidentalmente, como sempre em todas as coisas, neste ram-ram onde se produz escavacanço, onde se escavaca o futuro como se não houvesse amanhã, a mim, resta-me pois aguardar pelo sr. Vítor e pela sua forma airosa de passar pela vida.
Amanhã haverá ainda as oposições que anunciam deitar tudo abaixo assim que se instalarem no governo do país… promessas, promessas, digo eu com enfado, e o reparo que me ocorre é que me correria muito melhor o texto se em vez de “rasgar, rasgar, rasgar!” se dissesse “escavacar, escavacar, escavacar!”
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