Recordo-me de quando era garoto e no prédio onde morava, no terceiro andar, havia um vizinho que era mestre de obras. Volta e meia, no passeio do outro lado da rua, faziam espera uns senhores, por vezes dias inteiros, aguardando por um sinal do dito. Suponho que tenha manifestado o meu interesse pela coisa até que alguém me explicou que o tal vizinho nem sempre pagava os serviços prestados pelos trabalhadores do pescoço esticado para trás que bebiam das janelas e varandas do prédio a possibilidade de tudo se resolver, porque afinal sempre haveria movimento lá dentro, um tremer na cortina, um assomo humano. Creio que talvez tenha sido também através destes momentos que floresceu a minha inclinação para a esquerda. Era garoto, mas já bem capaz de identificar a fealdade na figura daquela fraude laboral.
Depois, com o tempo, comecei a perceber que as “esperas” participadas por pessoas que de algum modo foram enganadas, era quase um mote nacional, uma actividade com pergaminhos e com regras próprias e, em vários momentos, devidamente mediatizada, não no sentido de intentar resolver a humanidade, mas certamente, inoculando na indignação solidária de todos os que já foram miseravelmente burlados e de todos os que percebem a capaz hipótese de virem a ser - e isso ao que parece somos todos -, a ideia de quanto é importante assistir no sofá ao odor das criaturas e da sua condição. É importante que nos recordem que esse odor está em nós, nos anima profundamente e do qual não é possível o corpo escapar, para que a vida continue pela sugestão do produto desodorizante que nos vai permitir finalmente obliviar provisoriamente tal desconforto.
É de facto esta uma das expressões máximas da participação política activa do povo português. Tão lusitano demonstrar a desgraça que se abateu sobre nós quando determinado individuo, ou tertúlia destes, mais ou menos habilidoso, incertamente movido por que instintos de rapina, nos contou uma história e no processo, nos subtraiu uma substancial quantidade daquilo que detemos como riqueza própria. Tão nosso este socialismo do logro em que a dicotomia entre o burlão e o burlado se consubstancia na produção de uma economia de recursos e afectos, democrática porque capaz de inverter a qualquer instante os papéis, uma economia nacional para lá dos espartilhos da ética burguesa, uma geringonça que no seu desconcerto produz produto interno bruto aos solavancos, um sistema de oportunidades e de catarses que embora dependente das relações de poder, a elas sobrevive porque lhes é a priori.
As “esperas” são, regra geral, por quem já não vem, pelo que voltou ao nada no universo de quem o detinha e do nada voltou como ente prodigioso no universo distante do outro. Na melhor das hipóteses haverá compensação, mas as “esperas” não têm fim.
Episodicamente sucede que uns quantos clientes de uma instituição bancária fizeram uma espera ao ilustre ministro da finança à saída da garagem de um hotel. Estas pessoas foram atraídas para os meandros da jogatana financeira por um banco que lhes acenou com uma minhoca dourada. Decididamente a coisa não correu bem, pelo menos para os mais incautos, e eis que o corpo dessa vertigem para cumular as poupanças que tanto fizeram da vida uma passagem mais pobre, se volatilizou na ginástica do “sobe e desce”. Rústicos resolutos e bem sucedidos. patos bravos, fura-vidas, todos enfeitiçados pela miragem prosaica dos dias de ouro, os “manifestantes” bloquearam a saída da garagem enquanto gritavam gestos e palavras de ordem perante o recuo do ministro.
“Dá-nos o nosso dinheiro!”
Lá para mais tarde, saído da porta da frente do hotel, o ministro enfim desabou sobre tanta desolação como um pai, censório mas não zangado, o melhor pai possível para tais crianças, capazes geneticamente de passar da zaragata para um “Vossa excelência” suplicante embargado por lágrimas.
- “Vocês têm de responsabilizar quem vos enganou!” - disse o ministro.
Foi o desespero a verter auto-comiseração que uniu aquelas pessoas para tão inútil empresa junto do eleito. Lesados e reféns de uma raiva virada para dentro, pedindo explicações à sua devota participação num sistema que já lhes preparava este desfecho, nos becos do engano. Quando tudo terminar, seja como for, tenha o resultado que tiver, a sublimação da culpa já estará feita e continuará inconsciente até que completa. Essa parte do berro e da amargura – da nossa e da dos outros – que não tendo encontrado explicação justa para o sucedido o deixará de procurar, permitindo enfim que a ira se faça dor processada no perdão de si e da tristeza necessária e valente para negar a perpetuação da espiral que alimenta a espera.
Depois, com o tempo, comecei a perceber que as “esperas” participadas por pessoas que de algum modo foram enganadas, era quase um mote nacional, uma actividade com pergaminhos e com regras próprias e, em vários momentos, devidamente mediatizada, não no sentido de intentar resolver a humanidade, mas certamente, inoculando na indignação solidária de todos os que já foram miseravelmente burlados e de todos os que percebem a capaz hipótese de virem a ser - e isso ao que parece somos todos -, a ideia de quanto é importante assistir no sofá ao odor das criaturas e da sua condição. É importante que nos recordem que esse odor está em nós, nos anima profundamente e do qual não é possível o corpo escapar, para que a vida continue pela sugestão do produto desodorizante que nos vai permitir finalmente obliviar provisoriamente tal desconforto.
É de facto esta uma das expressões máximas da participação política activa do povo português. Tão lusitano demonstrar a desgraça que se abateu sobre nós quando determinado individuo, ou tertúlia destes, mais ou menos habilidoso, incertamente movido por que instintos de rapina, nos contou uma história e no processo, nos subtraiu uma substancial quantidade daquilo que detemos como riqueza própria. Tão nosso este socialismo do logro em que a dicotomia entre o burlão e o burlado se consubstancia na produção de uma economia de recursos e afectos, democrática porque capaz de inverter a qualquer instante os papéis, uma economia nacional para lá dos espartilhos da ética burguesa, uma geringonça que no seu desconcerto produz produto interno bruto aos solavancos, um sistema de oportunidades e de catarses que embora dependente das relações de poder, a elas sobrevive porque lhes é a priori.
As “esperas” são, regra geral, por quem já não vem, pelo que voltou ao nada no universo de quem o detinha e do nada voltou como ente prodigioso no universo distante do outro. Na melhor das hipóteses haverá compensação, mas as “esperas” não têm fim.
Episodicamente sucede que uns quantos clientes de uma instituição bancária fizeram uma espera ao ilustre ministro da finança à saída da garagem de um hotel. Estas pessoas foram atraídas para os meandros da jogatana financeira por um banco que lhes acenou com uma minhoca dourada. Decididamente a coisa não correu bem, pelo menos para os mais incautos, e eis que o corpo dessa vertigem para cumular as poupanças que tanto fizeram da vida uma passagem mais pobre, se volatilizou na ginástica do “sobe e desce”. Rústicos resolutos e bem sucedidos. patos bravos, fura-vidas, todos enfeitiçados pela miragem prosaica dos dias de ouro, os “manifestantes” bloquearam a saída da garagem enquanto gritavam gestos e palavras de ordem perante o recuo do ministro.
“Dá-nos o nosso dinheiro!”
Lá para mais tarde, saído da porta da frente do hotel, o ministro enfim desabou sobre tanta desolação como um pai, censório mas não zangado, o melhor pai possível para tais crianças, capazes geneticamente de passar da zaragata para um “Vossa excelência” suplicante embargado por lágrimas.
- “Vocês têm de responsabilizar quem vos enganou!” - disse o ministro.
Foi o desespero a verter auto-comiseração que uniu aquelas pessoas para tão inútil empresa junto do eleito. Lesados e reféns de uma raiva virada para dentro, pedindo explicações à sua devota participação num sistema que já lhes preparava este desfecho, nos becos do engano. Quando tudo terminar, seja como for, tenha o resultado que tiver, a sublimação da culpa já estará feita e continuará inconsciente até que completa. Essa parte do berro e da amargura – da nossa e da dos outros – que não tendo encontrado explicação justa para o sucedido o deixará de procurar, permitindo enfim que a ira se faça dor processada no perdão de si e da tristeza necessária e valente para negar a perpetuação da espiral que alimenta a espera.
Bolas! Tenho de reler este texto, perdi-me nos meandros desta escrita densa.
ResponderEliminarOlá. Há momentos nas nossas vidas, experimentados muitas vezes precocemente, que nos marcam de tal forma que quase se fixam para sempre em traços nossos. Aqui está um exemplo disso mesmo. Ainda infante, atento à vida e ao mundo que girava à tua volta, percebeste cedo que as relações humanas têm entranhadas na sua quase-essência limalhas de injustiça e de fraude. Porque em POrtugal cresceste, ainda hoje te questionas acerca da "capacidade" de todos nós para nos iludirmos, sustentando na categoria da "espera" a renúncia à nossa própria fala, à nossa livre escolha, à nossa natural exigência. POr comodismo, ou impossibilidade de integrarmos o Nada; por embotamento mental, ou pelo simples facto de não suportarmos o inadiável, a resposta é sempre a mesma: o chorrilho de choraminguices e justificações, já nada nada criativas, mas pelo menos (se não para sempre) ainda muito actuais.
ResponderEliminarFelizmente tu, e alguns mais, cresceram aceitando que lhes resta ao menos o questionamento.
Bem hajas. Gostei de te ler mais uma vez. Beijo. Até breve. Azul.
P.S. novo blogue meu: www.opinioesdamanjerica.blogspot.com
Passa por lá, se te der jeito! lol